sábado, 27 de dezembro de 2008

Fim de ano e saudade

Sempre que chega o fim de ano, olho para as pessoas ao meu redor e vejo uma euforia sem tamanho. Umas, porque conseguiram viver mais um ano em suas vidas; outras, porque acreditam em Jesus e resolvem comemorar seu nascimento. Outras, ainda, porque sentem o clima de festa e preguiça que toma conta da cidade neste período e resolvem sair comemorando tudo o que vêem pela frente, em confraternizações diárias (às vezes, até, mais de uma por dia). Não me vi assim. Aliás, não costumo fazer parte deste estado coletivo que toma conta das festas de fim de ano. O que costumo sentir, inclusive, é saudade, pois a maioria pessoas que gostariam que estivessem comigo na passagem de ano geralmente estão longe e, no momento em que o relógio aponta meia-noite, penso: "É, bem que gostaria que eles estivessem aqui!". O fim do ano, pra mim, portanto, é nostalgia. É a vontade de ter todas as pessoas queridas por perto e não tê-las. É aguardar ansiosamente sua volta de lugares com milhões de pessoas e luzes extremamente belas dos fogos, banhadas pelo mar e pelas oferendas a Iemanjá. É aguardar, de braços abertos, aquele e, ou, aquela que está por vir. Fim de ano é, sem dúvida, saudade pra mim. Pra Humberto Gessinger, dos Engenheiros do Hawaii (minha banda favorita), há toda uma esperança de um novo ciclo no ano que se inicia. Posto aqui sua mensagem de fim de ano, na música "Em paz", em gravação realizada ano passado com sua filha, Clara:


sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Perdoando Deus - Clarice Lispector

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre. E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos. Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais. Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação. ... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escadalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar
Deus, Ele não existe.

in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

domingo, 7 de dezembro de 2008

Quebra-cabeça

Num quebra-cabeças
A peça que sobra
A língua estrangeira
Mal compreendida
Eu sou teu mistério
Sou teu sonho estranho
E mesmo que te chame amor
Não sou teu território
Caminho impreciso
Só te quero bem
Minha verdade é metade
Que pulsa e que chama
Enquanto um pedaço aguarda
E guarda faminto
Um sonho bonito

domingo, 30 de novembro de 2008

Siderado

- Hã? O que você disse?

- Perguntei se como se sente diante da possibilidade de ela não gostar mais de você.

Essa pergunta foi o suficiente para que ele se desse conta de que ainda não havia se questionado a esse respeito, pois, para si, a única possibilidade existente era a de estar com ela por toda a eternidade. Os fatos, contudo, não apontavam nessa direção e, por uma necessidade muito parecida com a que os cristãos têm de saber se habitarão o paraíso quando de sua morte, ele precisava manter a esperança de que um dia pudesse ter sua presença mais uma vez. E a resposta que tinha para dar ao seu amigo era o silêncio, pois não sabia como dizer: “eu não sei”. Isto seria como que admitir a iminência do fim e que nada restaria para si a não ser lidar com a dor da perda do grande amor de sua vida. Seus olhos ficaram parados, como que olhando fixamente para algo que apenas ele via – a cena de uma adeus que teria que acontecer, mais cedo, ou mais tarde. Seu semblante não poderia ser descrito como tristeza, pois, na verdade, não encontrava correspondência nenhuma em palavras e poderia ser resumido à seguinte sensação: um formigamento no estômago, como se estivesse devorando a si mesmo e, assim, levando junto aquela saudade absurda, pois os dias se passavam e nada mais importava para si, a não ser o incontrolável desejo de estar ao lado dela e se sentir feliz. Feliz. Que adjetivo estranho, este, em sua circunstância atual. Chegou, então, a se perguntar qual a última vez em que se considerou feliz. Não conseguiu encontrar registros recentes dessa época e, então, um nó na garganta represou-lhe uma completa inundação de lágrimas que estava por vir. “A vida é um processo miserável” – pensou no mesmo instante em que se viu tomado por essas sensações. Na verdade, agia assim por tentar parecer um intelectual e falar do processo “vida”, mas sabia que falava de si, falava da miserabilidade que vinha sendo a sua vida. E continuou suas divagações sobre a (sua) vida: “Vive-se para simplesmente se manter vivo e o que vier além disso é luxo, frescura”. Seu olhar permanecia siderado, tomado por uma idéia que, mesmo diante dos fatos, até então, não havia concebido e, o pior, pela constatação de que apenas se mantinha vivo e nada mais. Sentiu, então, seu estômago se remoendo, como que digerindo aqueles dados que acabara de compreender a respeito de si. E, quanto mais se remoía o estômago, mais sentia a solidão. Parecia que passava a si mesmo num liquidificador, num sofrimento que não conseguia produzir palavras, apenas dor e confusão. Enquanto isso, seu amigo o olhava, sem compreender muito bem o que se passava, sabendo apenas o essencial: ele não estava ali. Até que, depois de alguns minutos, que mais pareceram horas, ele respondeu:

- Não sinto. Fico dormente. É como se me faltasse por inteiro e o que sobra é uma carcaça que não é mais capaz de amar.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Não, a vida não se resolve com três palavras. Às vezes, a vida não se resolve com o Aurélio inteiro.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Luminosa escuridão

...e tudo o que via era escuridão, porque simplesmente sentia que esse era o único caminho que lhe restava. Não era cego, tampouco estava assim pela falta de luz. Sabia que pelo caminho havia bombas espalhadas pelo chão e que, portanto, poderia se machucar, ou, até mesmo, morrer. Mais valia para si a sensação de ter os braços abertos, mesmo sabendo que o que queria abraçar não lhe caberia nos braços, pois a falta de humildade de seu desejo exigia-lhe um abraço em todas as possibilidades que a vida tinha para lhe oferecer – até mesmo a falta de vida. Diferenciava-se de um kamikaze, pelo simples fato de não ter certeza de absolutamente nada, a não ser de seu desejo de um abraço que não lhe cabia nos braços. “Cuidado, você vai se ferir!” – gritavam atônitas pessoas que simplesmente o viam caminhar lenta e cegamente por uma trilha tão perigosa, sem compreender que, para ele, mais perigoso era não caminhar. Não, não se tratava de necessidade. Era mais, muito mais. Talvez por isso, quem observava não entendia. “Afinal, pra onde caminha aquele louco?” – era isso que o olhar dos curiosos expressava. Mas e daí? Ele não poderia vê-los, pois lhe encandeava a clareza da necessidade de escuridão que o guiava naquele instante e a certeza de que, apesar de seu desejo de chegar vivo do outro lado do caminho, independentemente do estado e do lugar em que chegasse, teria os braços repletos de vida, pois, vale lembrar, eles estavam abertos. Na verdade, estavam escancarados, mais parecendo um compasso, só que sem qualquer objetivo matemático, pois não havia cálculos, apenas movimento e entrega. A sensação era de se jogar no mar, sabendo que não seria possível alcançar o chão e, ao invés do desespero de quem teme morrer afogado, deleitar-se com a vastidão das águas que o banhavam naquela hora. Surpreendia-se com a lucidez que conseguia possuir na escuridão, pois se guiava, de modo seguro, por uma pulsação que tomava conta de todo o seu corpo. Eram batidas como as de um coração, mas realizadas com o corpo inteiro, seguindo um ritmo que lhe era peculiar e cujo som não poderia ser auscultado por nenhum estetoscópio. “Tum, Tum.. Tum, Tum...” – a cada batida, um passo e, a cada passo, a exigência de se caminhar cada vez mais despido de certezas, de todas as experiências que houvera tido até então. Sentia-se como se um banho de vida no meio de um caminho tido como perigoso tomasse conta de si, naquele instante, e que nada poderia tirar-lhe a convicção de que era naquelas águas que desejava se molhar...

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Conjugação Da Ausente (Vinicius de Moraes)

Foram precisos mais dez anos e oito quilos
Muitas cãs e um princípio de abdômen
(Sem falar na Segunda Grande Guerra, na descoberta da penicilina e na desagregação do átomo)
Foram precisos dois filhos e sete casas
(Em lugares como São Paulo, Londres, Cascais, lpanema e Hollywood)
Foram precisos três livros de poesia e uma operação de apendicite
Algumas prevaricações e um exequatur
Fora preciso a aquisição de uma consciência política
E de incontáveis garrafas; fora preciso um desastre de avião
Foram precisas separações, tantas separações
Uma separação...

Tua graça caminha pela casa
Moves-te blindada em abstrações, como um T. Trazes
A cabeça enterrada nos ombros qual escura
Rosa sem haste.
És tão profundamente
Que irrelevas as coisas, mesmo do pensamento.
A cadeira é cadeira e o quadro é quadro
Porque te participam.
Fora, o jardim
Modesto como tu, murcha em antúrios
A tua ausência.
As folhas te outonam, a grama te
Quer.
És vegetal, amiga...
Amiga! direi baixo o teu nome
Não ao rádio ou ao espelho, mas à porta
Que te emoldura, fatigada, e ao
Corredor que pára
Para te andar, adunca, inutilmente
Rápida.
Vazia a casa
Raios, no entanto, desse olhar sobejo
Oblíquos cristalizam tua ausência.
Vejo-te em cada prisma, refletindo
Diagonalmente a múltipla esperança
E te amo, te venero, te idolatro
Numa perplexidade de criança.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Espelho e silêncio

Silêncio. Além de alguns objetos antigos, nada mais sobrava naquela casa a não ser um denso silêncio que se apossava de todo o ambiente. Preencher-se de vazio era o maior desafio que agora encontrava e, mesmo que não quisesse, tinha que ouvir todo o absurdo que a ausência de som tinha para lhe comunicar. Como se houvesse sido raptado, via-se obrigado a ouvir suas vísceras se espremerem clamando por algum barulho que pudesse aquietar aquele desassossegado lugar. Não adiantava. Olhou para a poeira e, reluzente, viu a sua frente um espelho, objeto que, mesmo trincado e desgastado pelo tempo, chamou-lhe atenção. Havia muito, não se olhava no espelho e sequer se lembrava da fisionomia que agora deveria aparentar. Talvez, aquele objeto houvesse lhe despertado o interesse, por conta de uma fresta que passava por uma telha quebrada, e que lançava sobre o espelho uma luz que se refletia, talvez para lhe lembrar de que era dia, embora isso não lhe fizesse a menor diferença. Parado, olhava e o que via era um objeto estranho, levando-o a se perguntar: “será que sou eu o que vejo neste espelho?”. Resolveu, então, mexer-se e observar seus movimentos naquele objeto tão empoeirado. Para sua surpresa, a imagem não se moveu como ele e, como que a lhe desafiar, congelou-se num sorriso feliz. “Por que ele olha para mim desta forma?” – perguntava-se sem ter a menor idéia da razão de tal fato. Sabia, porém, que isso lhe deixava repleto de uma curiosidade rancorosa, cheio de vontade de pular para dentro dali e estrangular com todo ódio que lhe habitava àquele instante aquela imagem tão inquietante. Foi ao banheiro, ligou a torneira (depois de muito tempo, quebrou-se o silêncio naquela casa) e lavou o rosto. Pensou que talvez fossem as madrugadas em claro que lhe houvessem danificado a visão e que, lavando o rosto com água gelada, poderia enxergar melhor e simplesmente se ver ali. Voltou ao quarto onde ficava o espelho, olhou firmemente para ele, com uma atenção que há tempos não dispensava a nada, como se estivesse lhe dizendo que agora o veria do modo correto. A imagem, de fato, já não estava mais da mesma forma, apesar de ainda ser o mesmo rosto estranho. Estava, porém, demonstrando um sorriso ainda mais largo e os olhos brilhavam tanto quanto o reflexo da luz que batia no espelho. Mais uma vez, era-lhe enigmática e lhe despertava cólera a “reação” da imagem a si. Afinal, de onde poderia vir aquele reflexo se tudo ali era silêncio e poeira? Inquieto e enfurecido, olhou para todos os lados e não encontrou nada que se parecesse com o que via naquele velho espelho. Tentou não olhar aquela imagem e prestar atenção a outros objetos presentes naquela casa escura, abafada e silenciosa. Infrutífera, porém, a tentativa, pois, quando se apercebeu, estava mais uma vez com o olhar fixado naquele espelho que, desta vez, mantinha a mesma imagem que apresentava quando foi olhado pela última vez, sorriso ainda largo e olhar igualmente brilhante. Seu sentimento, agora, não era de fúria, mas sim de saudade. Mesmo não sendo a pessoa que via no espelho, veio-lhe a lembrança de um antigo amor e o silêncio agora, misturado àquela imagem, soava como um cântico selvagem – estridente e profundo. Sua saudade não lhe remetia a momentos ou imagens, senão à sensação da presença daquela mulher de quem nem bem se lembrava do rosto, mas a respeito da qual sentia a sensação exata do prazer que era compartilhar com ela a vida. Ao se aperceber dessa devastadora saudade, interrompeu o silêncio com um grito que parecia vir de uma dor tão profunda quanto à de um parto. E, de fato, era isso que parecia acontecer naquele instante. Estava parindo algo grande dentro de si e que lhe rendia sensações de certeza e dor, pois, assim como se sabia desejante, sabia-se vorazmente amante e lhe era estranho não tê-la consigo àquele momento. Tomado pela saudade e pela dor do parto, do qual era parteiro e parturiente, olhou mais uma vez para o espelho e o que viu já era outra imagem. Esta, aliás, apesar de ainda não lhe ser familiar, impunha-lhe um nome: saudade. Não se lembrava do nome da mulher, mas sabia que a presença de sua ausência lhe tomava por inteiro naquela hora. Assim como a imagem não era sua, sentia-se refém daquela mulher, de quem não se lembrava do nome, e que, no meio daquela poeira e do todo o silêncio que insistia em tomar conta do lugar, por ora se chamava saudade. E porque sabia que era dela, não tinha outra escolha, senão senti-la por todo o tempo e em todas as coisas, pois tudo o que havia para si naquele instante era silêncio, poeira, um espelho e Saudade.

domingo, 9 de novembro de 2008

Tempo e saudade

"O tempo corre", música composta por mim (letra) e por Juliano Stevam (melodia). Fala da passagem imperdoável do tempo.

sábado, 8 de novembro de 2008

(Des) amor nos três pavimentos

Se você quiser, a gente cancela:
- aquela viagem;
- a casa dos sonhos;
- o filho que poderíamos ter.
Se você quiser, a gente cancela o amor. Diz que ele foi endereçado para alguma outra pessoa e se perdeu
Ou para uma pessoa que nunca existiu.
“Desculpe, foi engano”
Se você quiser, a gente chama do que você quiser:
- de erro;
- de mentira;
- de ilusão.
Se seus olhos não puderem suportar o brilho – posto que cega
E sua vida,
A vida,
Que você não pode enterrar.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Mapas do Acaso

Nada mais justo do que começar esse blog com uma menção à canção que deu origem ao título deste blog - "Mapas do Acaso", de Humberto Gessinger. Não preciso dizer algo sobre ela, penso que esta bela composição fala por si. Deliciem-se, já que, como diz Clarice Lispector em "Água viva", "não se compreende música; ouve-se" :