quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Presente

Improvável, diriam alguns. O encontro de seus encantos não cruzaria as ruas daquela cidade, se não fosse naquela precisa hora e naquele exato dia. E só com essa exatidão para desafiar os cálculos tão precisos que previam probabilidades. Horas antes, e nada feito. Seu tempo não seria o presente leve e intenso em que se desenrola um beijo, senão que ficaria confinada ao futuro do pretérito. E era exatamente por naquele instante não terem nem futuro nem pretérito que puderam se enxergar ali mesmo. Nem ancestralidades, nem aspirações muito além do dia seguinte, por mais que o desejo conspirasse contra a vontade de ambos e lhes demandasse uma segunda, uma terceira e quantas mais vezes fossem necessárias para se reconhecerem. Seus sentidos se conjugaram em alegria, leveza e desejo de agora, renunciando por um fugaz instante a tudo o que já sonharam um dia. Ignoravam a longevidade daquela sensação e pouco lhes importava isto. É que por ser bom, desejavam preservar o que ocorria do exato modo como acontecia. E caso os curiosos ao redor lhes perguntassem o que era mesmo que se passava ali, responderiam, como se houvessem combinado uma resposta, que se tratava de um acontecimento, simplesmente. Desses que, de tão novos, não se encerram numa denominação vulgar. Eram maduros demais para se apaixonarem assim, no primeiro olhar, mesmo que o que sentissem lhe apontasse beleza e encanto. Eram também desejosos demais para se contentarem com contemplação. A simplicidade da atualidade que se desenvolvia os impulsionava para um instante a mais nos que se sucediam e, por isso mesmo, não ousavam falar em amanhã, mesmo sabendo que ele surgiria independentemente da vontade de ambos.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Luz e sentido

Há dias em que é preciso calar. Há momentos em que as palavras faltam e tudo o que fica neste interstício entre pensar e comunicar é angústia. É que as palavras de outrora se converteram em expressão morta, e calar-me é sentir o peso da insuficiência dos verbos ditos, pois a palavra verdadeira, aquela que diz de mim, só parte quando carregada por uma verdade absolutamente sentida e profunda. E o que sinto, agora? Esta pergunta paira por todo o meu corpo buscando uma resposta precisa, mas que não encontra vocábulo correspondente para uma pronúncia sem hesitação. Sei apenas que algo aconteceu e que dizer qualquer palavra agora é precipitar a pronúncia de algo incerto, balbuciar sensações imprecisas e gerar terror àqueles que ouvirem uma sentença incerta. Sim, porque o risco de dizer é presente em tudo o que ouso pronunciar. E meu medo está no perigo presente em definir, marcar posição. Minha palavra agora é nômade e não encontra forma, nem conteúdo, apenas inquieta pela impossibilidade de ser pronunciada plenamente. É como se fosse dita aos poucos, na forma de sílabas soltas no meio de frases vulgares pronunciadas ao longo de um dia inteiro. E se alguém quiser me ouvir, deixo claro desde já a necessidade de atenção a retalhos que não se ligam em instantes contínuos. São frases que, ao invés de evidenciar, escondem o que carregam e montam um quebra-cabeças que nunca se completa. Isto não faria sentido algum, não fosse minha necessidade iminente de expressar o que se passa comigo e que já não sei mais como chamar. Expressar, porém, pode significar deixar guardado o mistério do que é dito. Sei que tudo o que digo carrega mistério, mas em dias como hoje é o mistério que carrega meu dizer e a sílabas intercaladas do meu retalho de vocábulos nada mais são do que um silêncio que re-vela e, portanto, guarda velado de novo o que se tentou dizer com tantas palavras antes. Descubro, então, que dizer pode ser querer guardar o que a palavra insiste em tornar claro. O problema é que a luz emitida pela palavra produz sombra no que se tenta iluminar e é penoso, embora esclarecedor, admitir a lucidez que há na escuridão.

domingo, 3 de outubro de 2010

O jardineiro-jardim II

Para Adriana, com carinho, cuidado e intensidade

“Quer entrar?” – esta foi a frase que ele escutou, numa das muitas andanças que vinha fazendo nas ruas da cidade. Era tudo muito estranho ali. E essa estranheza não se dava apenas pelo convite em si, mas, sobretudo, pelo lugar de onde ele vinha. Numa cidade com exuberamente vegetação, foi um pequeno jardim colorido e maltratado que lhe chamou atenção. Mas como poderia ser chamado por algo que nem mesmo poderia falar? Desviou a atenção quanto ao convite e prosseguiu, como se nada tivessse ouvido, como se fosse um delírio encadeado pelo impacto da beleza do que via – um desejo de que, de fato, fosse possível ser chamado para dentro de um lugar de tamanha beleza, que chamava atenção exatamente pelo contraste em relação ao que costumava ver. Enquanto a cidade era repleta de árvores gigantes e imponentes, aquele jardim lhe mostrava simplicidade e delicadeza, mesmo que, à distância, lhe exibisse austeridade. Sua descrença, porém, logo foi questionada pela repetição do chamado. Tratou, então, de tapar os ouvidos, pois era-lhe difícil acreditar num acontecimento daquele tipo. Continuou, porém, a ouvir o convite, igualmente intenso e, sobretudo, verdadeiro. Percebeu, então, que não se tratava de um delírio e que, ainda mais estranho, não percebia o que lhe aparecia com os simples órgão dos sentidos. O sentido, se havia, era de outra ordem, que lhe instigava a ver sem olhos e ouvir sem ouvidos. A única evidência que lhe guiava era a sensação pulsante de um desejo mútuo, mesmo que não soubesse muito bem de quê. Aproximou-se das plantas de olhos fechados e tocou-as com um misto de cuidado e desejo. Era a primeira vez que percebia a possibilidade da confusa equação entre intensidade e leveza. Era uma mistura confusa entre a suavidade do carinho e a avassaladora voluptuosidade do desejo. Habitava seus olhos, então, uma beleza singular, vista somente por quem se permite a loucura de uma experiência em que se precisa estar embotado de uma miopia para ver melhor, pois tudo lhe parecia nítido. E se lhe perguntassem como era possível, muito provavelmente responderia: “não sei.”. Logo ele, sempre acostumado a dar precisas e rebuscadas respostas e se regozijar por isto, constatava com imensa e inédita satisfação sua incrivelmente bem-vinda ignorância. Descobria, naquele instante, que a ignorância poderia ser sábia e, por que não, um ato de liberdade tão legítimo quanto a mais lógica das equações. Sentia-se cuidado pelas plantas que habitavam o jardim e, em mais um fato único, viu-se cheirado por elas. “A memória das plantas” – pensou – “é olfativa e este parece ser seu jeito de dizer que sou bem-vindo, que posso vir quando quiser.”. Um sentimento de gratidão pelo lugar e seus habitantes inundava-lhe, mas não sabia como expressar isto. Todas as ideias que lhe vinham pareciam pequenas e toscas diante da beleza do que estava vivendo ali. E seria pouco, pelo simples fato de ainda não saber muito bem dar um nome ao que acontecia, pois em tudo aquilo lhe era novo. Chegou, então, à conclusão de que o suave, delirante, intenso e profundo encontro que se produzia ali não era seu, nem do jardim e que portanto não fazia sentido agradecer a ninguém. Passou, então, a contemplar e cuidar como forma de dizer: “quero-te sempre bem cuidado, pois tua beleza e carinho me tornam belo e cuidadoso.”.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

A liberdade de cair

“Te equilibra!”, “Segura firme o guidão.”, “Pedala com força!”, “Olha pra frente e reto!”. Essas eram as frases que Andrea escutava de seus amigos enquanto tentava, depois dos trinta anos de idade, equilibrar-se numa bicicleta de cesto na frente, dessas feitas para meninas. Ao que tudo indicava, todos ali pensavam que a dificuldade de Andréa era de caráter técnico, e lhe indicavam o modo de superá-la através da claras, simples, e, por que não dizer, óbvias instruções sobre o procedimento correto a ser adotado para conseguir se equilibrar, pedalar e levar adiante a bicicleta que conduzia. Aliás, pela inabilidade que demonstrava naquele momento, mais parecia ser carregada pela bicicleta, pois não demonstrava ter qualquer controle sobre ela. Como uma criança que tenta aprender a andar, oscilava entre momentos em que demonstrava firmeza e vaga esperança de que fosse conseguir executar aquela simples tarefa. Andréa, porém, diferenciava-se da criança por saber exatamente o que fazer. A ela, eram muito claros todos aqueles passos e nunca duvidou de que equilíbrio somado a firmes pedaladas fatalmente a faria andar de bicicleta. Guardava consigo a resposta a uma pergunta que nunca lhe fizeram: a do porquê de nunca haver tentado. Provavelmente, nunca lhe haviam perguntado porque o espaço entre a dúvida das pessoas e a sua resposta era preenchido por muitas interjeições, sempre indicando o absurdo que lhes parecia aprender algo tão simples àquela idade. Se lhe perguntassem, talvez pudessem compreender o porquê daquilo, pois sua resposta era tão simples quanto a atividade que se propunha: não queria cair. E por não querer cair, pouco se arriscava a essa possibilidade. Por sinal, poucos foram os arranhões que teve na pele até aquela idade e pretendia manter assim por longos anos. Mas aquele dia era diferente, pois acordou com vontade de cair. É como se, antes mesmo de se lenvantar da cama, tivesse caído. Pelo menos em sua sempre fértil imaginação. E naquela tarde, pôs-se, caída em pensamento, sobre a bicicleta, sabendo exatamente o que fazer e como fazer. Era movida por algo distinto de coragem e segurança. O inverso dessas sensações talvez dissesse melhor daquele momento, pois o que a fazia subir na bicicleta era a afirmação da possibilidade de ter medo, ser insegura e, mesmo assim, tentar. Neste sentido, cair ou não cair faziam parte de uma única possibilidade: andar de bicicleta. Por isto mesmo, apesar de oscilante na técnica, estava firme em seu propósito de arriscar-se cair. Inicialmente, seguia empurrada e sustentada por um amigo, que deixava claro o prazer de poder exercer aquela função. Para ele e para quem acompanhava de perto com instruções técnicas, era tudo uma grande diversão. Afinal, era engraçado observar o que ocorria. A diferença residia exatamente na posição de cada um. Enquanto os “instrutores” e o amigo que a apoiava eram observadores, Andrea participava, de modo que era parte integrante da situação. Isto fazia com que, ao invés de engraçado, o que ocorria lhe trouxesse a sensação de profunda intimidade consigo mesma, revelação de sentidos até então intocados. Diante de tal mistério sobre si mesma, cambeleante e ainda apoiada pelo amigo, deu a primeira pedalada e, rapidamente, a segunda e as que se seguiam. A cada pedalada, a sensação de ver revelada uma pequena peça do quebra-cabeça que falava de si mesma e, mais do que sua montagem completamente e perfeita, a clareza de que ele existia, sempre incompleto ou com excesso de peças. Admitir-se um quebra-cabeças que não se fecha era impensável para Andrea, sempre dona de si, com respostas e explicações para tudo de sua vida, que mais parecia um desenho de traço reto e contornos bem definidos. Uma a uma, as peças que não se encaixavam pareciam passear por todo o seu corpo, que se esforçava integralmente em produzir um movimento novo, uma revelação de seu contrário inimaginável a partir de simples pedaladas. Naquele instante, ela era a profusão de sentimentos que a habitavam e já não mais ouvia as instruções dadas. Tudo o que via e ouvia eram imagens confusas e palavras balbuciadas, como que inventadas antes mesmo de um idioma, eram sons emitidos em código indecifrável até mesmo para ela, que os pronunciava sem nem bem entender o porquê disto. Tomada pelo sentimento de ineditismo do instante, Andrea resolveu olhar a seu redor e, para sua surpresa, não mais via as pessoas que lhe acompanhavam e o único som que lhe chegava era o do vento que batia em seu rosto, que se misturava às sensações confusas de mistério sobre si mesma. Andrea não sabia até quando aquele movimento duraria ou onde iria parar de pedalar, mas tinha clareza de que no trajeto incerto que desenvolvia, começava a se questionar sobre o sentido da palavra liberdade.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O jardineiro-jardim

E se um jardim pudesse falar? E se ao passar em frente a plantas bonitas, de bom cheiro, mas machucadas por maus tratos, ele se sentisse impelido a cuidar delas? Nunca havia se feito esta pergunta, ou cogitado tal possibilidade. De fato, de seres inanimados não poderia ouvir exigência alguma, a não ser uma necessidade que ele mesmo possuía de admirá-las, de compreendê-las como coisas e, assim, algo incapaz de pedir algo a alguém. Ele, que nem mesmo era jardineiro, ou imaginava possuir a habilidade de cuidar de qualquer planta, se viu cultivando algo. Por vezes, parecia um momento bobo. Cores bobas, gestos bobos, simples demais para parecer tão potente, tão poético. E aconteceu assim: sem mais, nem menos – no tamanho e na forma exata para se capturar – ou seria o nome disso liberdade? Era ilógico para si pensar isto; afinal, deixar-se capturar pela exuberância de um jardim sem nem mesmo saber o nome das plantas que ali havia, ou receber qualquer instrução sobre que cuidados ter. Passou na rua, viu as bonitas flores ali plantadas e, quando deu por si, já as cuidava, como se já fosse sua função há muito tempo. Suas técnicas – se é que as possuía – se confundiam com uma sincronia leve e harmônica entre o desejo de contemplar as flores do local e a necessidade de contribuir para que aquela paisagem, já bela, lhe parecesse exuberante. Para si, era como uma dança, embora não soubesse dançar. Tratava-se de dança, porque tudo era movimento, transformação e enriquecimento. Aliás, isso se dava de modo mútuo, para sua grande surpresa. Percebia que cuidar do jardim era também cuidar de si e se perceber crescendo junto e não soube, então, distinguir, se de fato era um jardineiro ou se também era jardim.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Das vantagens de ser bobo - Clarice Lispector

Encontrar alguém que se diz bobo ou é classificado assim pode resultar em algo mágico. Ando pensando e passando por isso. Vale a pena ler o texto abaixo, da sempre genial Clarice:

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir, tocar no mundo.
O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas.
Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo, estou pensando”.
Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a idéia.
O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem.
Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas.
O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver.
O bobo parece nunca ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer.
Resultado: não funciona.
Chamado um técnico, a opinião deste era que o aparelho estava tão estragado que o concerto seria caríssimo: mais vale comprar outro.
Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e, portanto estar tranqüilo.
Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.
Aviso: não confundir bobos com burros.
Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera.
É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: “Até tu, Brutus?”
Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!
Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu.
Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.
O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos.
Os espertos ganham dos outros. Em compensação, os bobos ganham a vida.
Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás, não se importam que saibam que eles sabem.
Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!
Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas.
É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca.
É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

- Clarice Lispector in “A Descoberta do Mundo”

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Liberdade entregue

O frio suor que escorria por sua testa e a palpitação desenfreada de seu coração denunciavam: não havia mais controle e, assim, nem sua fachada intelectual, nem seu excesso de pudor poderiam lhe negar a pesada obviedade de que tinha diante de si o que de mais belo já havia se apossado de sua visão. Após tanto tempo de contemplação, finalmente podia chegar perto, sentir o cherio, saber que era real e, nem por isso, perder o encantamento por ela. E tudo poderia ser sintetizado na mínima distância que a separava de sua boca. Era como se no interstício que havia entre ambos pudesse se concentrar toda a beleza que lhe tomava a visão e todo resto do corpo – era difícil ver com o corpo todo, pois, ao invés de imagens, sensações estavam presentes. Não era capturar a presença dela numa fotografia e, então, emoldurá-la e pendurá-la na parede. Essas sensações o remetiam à fugacidade do instante em que se encontrava. Não era, aliás, um instante qualquer, pois o encantamento que o tomava era tão forte quanto a tensão da dúvida sobre o que aconteceria a partir dali. Tudo era mistério e desejo e havia a nítida – se é que é possível nitidez quando o desejo pulsa – sensação de que a situação se guiava por si. O mais absurdo que lhe parecia era que, exatamente por não ter qualquer controle, sentia uma a mais plena liberdade. Nunca havia se sentido tão livre e, ao mesmo tempo, tão entregue, tão rendido, tão belo. Naquele momento, pensou a respeito do lugar onde se situava a beleza do que via e, numa lucidez só permitida a quem se permite apaixonar, e, portanto, ser livremente entregue, percebeu que a beleza não estava nem em seus olhos, nem no corpo que lhe aparecia adiante. Se havia morada para isto, ficava em algum lugar entre os dois; possivelmente, entre o olhar de quem olhava e o de quem (em forma de resposta) era olhado. Era como se houvesse uma linha tênue e invisível para quem não estivesse tomado por aquele intenso sentimento de paixão e admiração e que era sustentado pelos dois olhares. O mais paradoxal dessa linha é que, quanto mais se aproximavam, mais forte ela se tornava. Chegar próximo dela, portanto, era se aproximar de si e perceber que havia nele coisas tão belas e livres que lhe permitiam o nobre e arriscado sentimento da paixão.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Congresso Internacional do medo - Drummond


Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O mistério - Lobão


Acho que o mistério me escapa
E daí que estou cansado
Talvez um dia eu acabe por me convencer
De que estou enganado
E ache o porquê
De todo o mal parado
Que eu senti sem ver
E talvez um dia respirar sem medo

Nada me leva a crer que eu descubra
Todo esse segredo a tempo
E a vontade de saber o que aconteceu
Não me sai do pensamento
Não me deixa respirar
Não me sai da idéia o tempo
Até o mistério clarear
E depois de tudo descansar sem medo

domingo, 9 de maio de 2010

Patrícia

Mais fácil seria se a tivessem dito histérica. Patrícia ainda se perguntava o que, afinal de contas, ocorria consigo àquela altura. Era tudo muito confuso para si e o que lhe vinha era uma sucessão de imagens sem qualquer nitidez e sentimentos que, em sua maioria, não se podiam nomear. De uns tempos para cá, medo era uma palavra muito em voga para si e, diante dele, não tomava qualquer atitude a não ser recuar. Seu recuo, dizia para os mais íntimos, nada mais era do que uma forma de se proteger. Porém, ao afirmar isto, perguntava-se : “proteger-me de quê? Estou sendo atacada por algo?”. Exatamente por não ter respostas, achava-se inquieta e buscava um sentido para todo aquele medo e o único sentimento que conseguia identificar era sua absoluta sensação que não havia lugar para si no mundo. Era como se, desde que começou a se sentir medrosa, não mais tivesse um lar para onde se referir. Por uns tempos, isto lhe soava como algo bom, afinal, sentia-se livre, pronta para abraçar a vida por não levar em seus braços nada mais que desejo. Talvez, aí, residisse seu problema: contra sua vontade, o desejo de Patrícia insistia em querer ter uma bússola, apontar para um rumo, coisa difícil pra quem insiste em mergulhar em sua própria liberdade. Por isto mesmo, a ideia de ser livre, por mais contraditório que lhe fosse, era sua própria prisão. Não porque tivesse que escolher, mas porque se percebia desejando isto o tempo inteiro. Seu desejo de ser livre ultrapassava qualquer outro que viesse a se fazer presente. Pensava consigo: “ser livre é poder escolher. Mas para que ser livre se escolher me assusta tanto?”. Refém de sua própria liberdade, Patrícia tinha dúvidas até mesmo de sua condição, pois buscava um caminho, mas não achava que poderia se considerar perdida, uma vez que só se perde quem tem uma referência para se considerar perdido, assim como só pode ser destro quem sabe de seu oposto. Seria uma condição indefinida? Difícil para ela se dizer assim, pois, por mais misteriosa que tentasse ser, Patrícia sabia de sua verdadeira necessidade de se dizer alguma coisa. Não era, porém, livre, pois se sentia refém de seus sonhos de liberdade. Não era apegada a nada e, se lhe havia amor, este nem mesmo sabia para onde apontar. Não tinha um caminho por onde se perder, pois toda referência para si foi abolida por um desejo absurdo e prepotente de liberdade plena. Liberdade que não passava por si, nem por outrem e que nem mesmo parecia ser deste mundo e que, portanto, mais lhe mostrava seus limites do que lhe afirmava vidas possíveis. Que vida, então, ser-lhe-ia possível? Talvez, a de perder sua própria vida.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Macacos - Clarice Lispector

Da primeira vez que tivemos em casa um mico foi perto do Ano Novo. Estávamos sem água e sem empregada, fazia-se fila para carne, o calor rebentara e foi quando, muda de perplexidade, vi o presente entrar em casa, já comendo banana, já examinando tudo com grande rapidez e um longo rabo. Mais parecia um macacão ainda não crescido, suas potencialidades eram tremendas. Subia pela roupa estendida na corda, de onde dava gritos de marinheiro, e jogava cascas de banana onde caíssem. E eu exausta. Quando me esquecia e entrava distraída na área de serviço, o grande sobressalto: aquele homem alegre ali. Meu menino menor sabia, antes de eu saber, que eu me desvaria do gorila: "E se eu prometer que um dia o macaco vai adoecer e morrer, você deixa ele ficar? E se você soubesse que de qualquer jeito ele um dia vai cair da janela e morrer lá embaixo?" Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que amargura era feita a minha aceitação, de que crimes se alimentava meu ar sonhador, e rudemente me salvou: meninos do morro apareceram numa zoada feliz, levaram o homem que ria, e no desvitalizado Ano Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.

Um ano depois, acabava eu de ter uma alegria, quando ali em Copacabana vi o agrupamento. Um homem vendia macaquinhos. Pensei nos meninos, nas alegrias que eles me davam de graça, sem nada a ver com as preocupações que também de graça me davam, imaginei uma cadeia de alegria: "Quem receber esta, que a passe a outro", e outro para outro, como o frêmito num rastro de pólvora. E ali mesmo comprei a que se chamaria Lisette.

Quase cabia na palma da mão. Tinha saia, brincos, colar e pulseira de baiana. E um ar de imigrante que ainda desembarca com o traje típico da sua terra. De imigrante também eram os olhos redondos.

Quanto a essa, era mulher em miniatura. Três dias esteve conosco. Era de uma tal delicadeza de ossos. De uma tal extrema doçura. Mais que os olhos, o olhar era arrendondado. Cada movimento, e os brincos estremeciam; a saia sempre arrumada, o colar vermelho brilhante. Dormia muito, mas para comer era sóbria e cansada. Seus raros carinhos eram só mordida leve que não deixava marca.

No terceiro dia estávamos na área de serviço admirando Lisette e o modo como ela era nossa. "Um pouco suave demais", pensei com saudade do meu gorila. E de repente meu coração foi respondendo com muita dureza: "Mas isso não é doçura. Isto é morte." A secura da comunicação deixou-me quieta. Depois que eu disse aos meninos: "Lisette está morrendo." Olhando-a, percebi então até que ponto de amor já tínhamos ido. Enrolei Lisette num guardanapo, fui com os meninos para o primeiro pronto-socorro, onde o médico não podia atender porque operava de urgência um cachorro. Outro táxi ¾Lisette pensa que está passeando, mamãe ¾outro hospital. Lá deram-lhe oxigênio.

E com o sopro de vida, subitamente revelou-se uma Lisette que desconecíamos. De olhos muito menos redondos, mais secretos, mais aos risos e na cara prognata e ordinária uma certa altivez irônica; um pouco mais de oxigênio, e deu-lhe uma vontade de falar que ela mal agüentava ser macaca; era, e muito teria a contar. Breve, porém, sucumbia de novo, exausta. Mais oxigênio e dessa vez uma injeção de soro a cuja picada ela reagiu com um tapinha colérico, de pulseira tilintando. O enfermeiro sorriu: "Lisette, meu bem, sossega!"

O diagnóstico: não ia viver, a menos que tivesse oxigênio à mão e, mesmo assim, improvável. "Não se compra macaco na rua", censurou-me ele abanando a cabeça, "às vezes já vem doente." Não, tinha-se que comprar macaca certa, saber da origem, ter pelo menos cinco anos de garantia do amor, saber do que fizera ou não fizera, como se fosse para casar. Resolvi um instante com os meninos. E disse para o enfermeiro: "O senhor está gostando muito de Lisette. Pois se o senhor deixar ela passar uns dias perto do oxigênio, no que ela ficar boa, ela é sua." Mas ele pensava. "Lisette é bonita!", implorei eu. "Ë linda", concordou ele pensativo. Depois ele suspirou e disse: "Se eu curar Lisette, ela é sua". Fomos embora, de guardanapo vazio.

No dia seguinte telefonaram, e eu avisei aos meninos que Lisette morrera. O menor me perguntou: "Você acha que ela morreu de brincos?" Eu disse que sim. Uma semana depois o mais velho me disse: "Você parece tanto com Lisette!" "Eu também gosto de você", respondi